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Os Salmos na Formação Espiritual da Igreja

SÍNTESE HISTÓRICA

Desde o início do movimento cristão, seguindo a tradição judaica do período do Segundo Templo em diante, os Salmos ocuparam um lugar central na história da formação espiritual da Igreja, tanto no cotidiano do cristão quanto na adoração comunitária. Em boa medida, essa atitude deveu-se à compreensão de que o Saltério seria uma espécie de suplemento à Torah, isto é, a demonstração de como deveria viver aquele que confiava no grande EU SOU e na sua Lei. Provas disso são encontradas nos escritos de alguns dos Pais Pré-nicenos, como Justino, o Mártir, (c. 100-165), Tertuliano de Cartago (c. 160-220) e Orígenes (c. 185-254). Eles demonstraram ser o Saltério um manual regulador da oração e do louvor individual e comunitário.

Dois ou três séculos mais tarde, principalmente devido à importância dos Salmos nas comunidades cristãs do Ocidente, Agostinho de Hipona (c. 354-430) cobriu todo o saltério em suas homilias. Seu método hermenêutico, apresentado em seu tratado “De Doctrina Christiana”, influenciou consideravelmente a exegese monástico-medieval, cuja expressão encontrava-se na leitura e cântico de Salmos, prática posteriormente conhecida como Lectio Divina (leitura orante dos Salmos). Através dessa leitura, buscava-se na repetição e meditação a presença do Deus que se revelava nas palavras do Saltério, capazes de conduzir o orante às profundezas de sua própria alma, enquanto aguardava, em silêncio, a ação poderosa e restauradora do Espírito Santo, revelando quem é o Senhor, quem somos nós e o que o Senhor espera de nós.

Esse cenário sofreu algumas mudanças, ainda que não significativas, até o período da Renascença, quando os estudos filológicos, sob os pressupostos do Criticismo Bíblico, “desespiritualizaram” os Salmos, ofuscando-os na formação espiritual da Igreja. A partir desse momento, com a alteração do sistema de pensamento da sociedade e da própria igreja, o Saltério não mais inspirava a espiritualidade, dando lugar a inúmeros desdobramentos que geraram uma espiritualidade antropocêntrica, egoísta, fragmentada, experiencial sem molduras, da qual a igreja contemporânea tornou-se a herdeira, cujo ambiente valoriza a psicologia moderna no tratar da alma humana e a cultura pop dos cânticos de louvor com suas repetições cansativas.

SÍNTESE HERMENÊUTICA

Se há alguma dúvida acerca da centralidade dos Salmos na práxis da Igreja Primitiva, logo deve ser desfeita quando lemos sobre o encontro entre o Cristo ressuscitado e dois de seus discípulos no caminho de Emaús (Lc 24). Nele, revela-se não apenas a importância dos Salmos para aquela geração, mas também o princípio hermenêutico de que os Salmos falam de Cristo e, por esta razão, seriam usados pelos apóstolos para dar autenticidade à fé proclamada, com ênfase especial nos Salmos 2, 22 e 110. Esse princípio também foi posteriormente seguido pelos Pais Apostólicos e pelos Pais da Igreja, consolidando-se como um método hermenêutico vital à fé, sendo sua prática necessária à igreja de todos os tempos.

Em contraste com a atual erudição nos estudos bíblicos que floresce cada vez mais e derrama continuamente informações novas sobre o ambiente bíblico (apesar do paradoxo de que a vida devocional e a adoração comunitária estejam em processo de sequidão), aqueles homens creram no princípio vital que posteriormente seria denominado “Analogia Fidei”, isto é, o método hermenêutico de que “a Escritura interpreta a Escritura”. Em relação ao Saltério, isso significaria que a leitura fiel da Escritura deveria levar em consideração o fato de que o próprio Cristo habitava nos Salmos, sendo, portanto, uma fonte legítima para a prática da fé. Não se tratava do uso de alegoria, o que deve ser colocado à parte, uma vez que não pressupõe a intenção autoral, mas daquilo que o reformador João Calvino chamou de “sentido claro”, pelo exame cuidadoso dentro do contexto amplo da Escrituras.

Desse modo, crendo que a mente do Autor das Escrituras elevava-se bastante acima da de seus autores humanos, a devida compreensão do texto precisaria ir além, exigindo daquele que se aproximasse do texto sagrado muito mais do que competências leitoras, uma vez que o Espírito não está confinado a autenticar as múltiplas leituras. Aquele que se aproxima, portanto, deve possuir temor e submissão às palavras de Deus, virtudes essas que derivam da preciosa ação do Espírito Santo em sua mente e coração. Para muito dos Pais da Igreja, a não ser que a Escritura fosse tratada como a boca de Deus em ação, não se poderia acessar as riquezas de sua presença. Para Lutero, em especial, se Deus não abrisse e explicasse a Sagrada Escritura, ninguém poderia entendê-la; “ela permaneceria um livro fechado, encerrado em trevas”. Assim, para que o mortal seja capaz de ver a Cristo nas palavras dos Salmos, o Espírito do Senhor precisa abrir-lhe a mente e o coração. Se assim não for, lhe parecerão loucura (1 Co 2.14).

SÍNTESE PASTORAL

Uma breve olhada na formação espiritual das comunidades cristãs no contexto da pós-modernidade e logo nos convenceremos, como dito anteriormente, de que ela é antropocêntrica, egoísta, fragmentada, experiencial sem molduras. Tristemente, perdeu-se o referente original fundamentado nas Sagradas Escrituras, especialmente nos Salmos, e, no seu lugar, colocou-se uma caricatura de espiritualidade que, na falta do original, aceita-se tão prontamente como verdadeira. Tudo isso, certamente, por ignorarmos o procedimento daqueles que nos antecederam, desconsiderando a mão da providência em imprimir no seio da sua igreja a sua vontade ao longo dos séculos.

Como livro de oração e saltério cúltico, tanto para judeus quanto para cristãos, os Salmos revelam-nos uma dimensão da fé em que o fiel é ser humano, ora repleto de júbilo e desejoso de louvar o seu Senhor, criador dos céus e da terra, redentor e sua torre segura, ora abatido, sem esperança e disposto a fugir, como se lhe fosse possível, até mesmo da presença daquele que enche os céus e a terra. Nossa humanidade é lembrada a todo o instante, constituindo-se algo tão necessário para uma igreja que não aceita lutas, dores, dificuldades, perseguições; uma igreja que descaracteriza os homens, ensinando-lhes algo que de fato não são; colocando sua confiança em algo que não se consolida, mas que se pulveriza.

Assim, como defendia Jerônimo (c. 347-420), o livro dos Salmos deveria ser o primeiro livro da Bíblia a ser lido por qualquer pessoa que se aproxima da fé cristã. Nele, tanto a devoção cotidiana quanto a adoração comunitária deveriam estar amplamente fundamentadas. Negligenciá-lo seria negligenciar a providência divina para aquele que O teme. Através dele, não apenas entenderíamos a fé de nossos pais, como aprenderíamos com eles a viver piedosamente na presença do nosso Criador e Salvador, pela mediação daquele que é o coração dos Salmos, Jesus Cristo, nosso Senhor. Para uma geração acostumada com caricaturas, esse seria, de fato, um caminho honrado para os que são chamados pelo Seu nome.

UM MODELO DE MEDITAÇÃO

Agora, convém responder as perguntas de ordem prática, que atendam àqueles que desejam servir-se dos Salmos para suas horas diárias de meditação: como devo proceder, se desejo conhecer mais acerca do Deus que se revela nas Escrituras, especialmente nos Salmos, e, consequentemente, mais de mim mesmo pelas mesmas Escrituras? Onde deve ser posto o meu olhar enquanto leio as Escrituras? Como devo disciplinar a minha mente para buscar a Deus?

Não há porque negar que vivemos em um mundo cuja plurivocidade é intensa. Podemos estar em silêncio, mas há muitas vozes enchendo os nossos pensamentos, vozes que não nos permitem experimentar aquela solidão saudável que nos leva a pensar em Deus. Somos pessoas internamente agitadas e, por isso, enfrentamos uma grande dificuldade em parar e meditar nos grandes feitos do Senhor. Nosso maior desafio, portanto, é fazer calar as inúmeras vozes que não nos deixam contemplar o Altíssimo. Não se trata de um exercício simples, cujo alcance do resultado seja fácil. Entretanto, ele é vital.

Nessa trajetória, é necessário compreender que não se trata de um exercício de leitura de caráter exegético, cujo objetivo seja construir teologia bíblica. Exegese e Teologia Bíblica são áreas necessárias a todos nós, seja individualmente seja coletivamente. Mas isso pode ser feito em outro momento. O objetivo aqui é uma leitura simples do texto, que seja capaz de alcançar os atributos destacados de Deus, nossa natureza destacada e a providência divina para nós a partir de quem Deus é e quem nós somos. É, portanto, Deus vindo a nós, pela Palavra e pelo Espírito, para cuidar de nós. Aqui está um bom caminho para a meditação, sem qualquer rigidez metodológica.

Consideremos, como exemplo, o Salmo 46. Após [1] um tempo de silêncio, disciplinando-se para que as inúmeras vozes sejam caladas, vozes de preocupação e dúvida por exemplo, acomode sua mente e seu coração para serem expostos ao que Deus tem a dizer. Os Salmos são, ao lado das demais Escrituras, a vox Dei. Jamais desconsidere isso. Em seguida, [2] leia-o todo com atenção e humildade, seguindo-se a isso [3] um novo período de oração, rogando que Deus o ajude a ouvir sua voz. Em seguida, considerando o aparecimento da expressão selah (pausa) ao final dos versos 3 e 7, formando perícopes. [4] Leia cada uma delas entremeadas por oração, cujo conteúdo deve ser o foco da perícope lida (quem é Deus e qual é a sua providência, considerando quem eu sou?). Ao final [5] eleve sua mente a Deus em gratidão, seja por meio da oração ou louvor. Um boa música, por exemplo, consolida o ensino da Escritura.

Lembre-se de que isso é apenas uma sugestão, sem qualquer rigidez, para aquele que deseja servir-se dos Salmos no exercício de sua devoção pessoal. Embora os caminhos sejam variados, dando-lhe condições de transitar neles, uma coisa não podemos ignorar: nossas mentes e corações precisam estar submetidos ao nosso Criador. Pela Palavra e pela oração, sob o governo do Espírito, nossos corações se achegam àquele que é repleto de misericórdia e está pronto para nos estender a mão. Como afirmou Agostinho de Hipona, “fizeste-nos, Senhor, para ti e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”.

Soli Deo Gloria!

Published inBíblia